domingo, maio 04, 2025

Canção Para a Minha Mãe

Pablo Picasso
E sem um gesto, sem um não, partias! 
Assim a luz eterna se extinguia! 
Sem um adeus, sequer, te despedias, 
Atraiçoando a fé que nos unia! 

Terra lavrada e quente, 
Regaço de um poeta criador, 
Ias-te embora antes do sol poente, 
Triste como semente sem calor! 

Ias, resignada, apodrecer 
À sombra das roseiras outonais! 
Cor da alegria, cântico a nascer, 
Trocavas por ciprestes pinheirais!

Mas eu vim, deusa desenganada!
Vim com este condão que tu conheces,
E toquei essa carne macerada
Da vida palpitante que mereces!

Porque tu és a Mãe!
Pariste um dia aos gritos e aos arrancos,
E parirás ainda pelo tempo além,
Mesmo sem madre e de cabelos brancos!

És e serás a faia que balança ao vento
E não quebra nem cede!
Se te partiu a paz do esquecimento,
Também a força de lutar te pede!

Respira, pois, seiva da duração,
Nos meus pulmões até, se te cansaste;
Mas que eu sinta bater o coração
No peito onde menino me embalaste.
 Miguel Torga - Diário III (1946)

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