sexta-feira, novembro 06, 2020

A Incrível História de Gabriela de Jesus

Oiça o cantor português Miguel Araújo em A Incrível História de Gabriela de Jesus.

Pobre menina, tão acidentada sina

Encontrada numa esquina, numa cestinha de palha

Em Lourizela, nas traseiras da capela

Como cria de cadela sem santinho que lhe valha

O padre Alfredo velho, cobarde e azedo

Não é tarde nem é cedo, despachou a desditosa

Por este meio, foi na volta do correio

Numa mula sem arreio enviada pra Murtosa

A dona Otília que ninguém nem dela queria

Viu na curiosa cria, cura para a solidão

Deu-lhe uma sopa, e de alguns restos de estopa

Fez-lhe carapins e roupa e uma cama sem colchão

Ao ver aquela tez de cravo e de canela

Deu-lhe o nome Gabriela (Dava a cara com a careta)

Mas sua beleza em brasa, em chama acesa

Pegou fogo à redondeza como o bafo do capeta

E a inocente um pobre meio rei de gente

Muito recatadamente, espairecia a sua mágoa

Com um rádio velho boca de batom vermelho

A cantar em frente ao espelho as canções da Lena d'água

Lobos malvados, velhos loucos reformados

Mexericos, maus olhados das beatas da igreja

Mal via a hora de arrancar dali para fora

Sem deixar rasto, ir embora ver o mundo, ver Estarreja

Sem pé de meia teve uma brilhante ideia

Decidiu pedir boleia e só parar em Paris

Sem carteira, lá foi sem eira nem beira

E nem sequer viu a fronteira não chegou nem a Sanfins

E em Valpaços com alma em mil pedaços

Entreteve-se nos braços de um magala de alcafache

Pediu boleia a um pelintra de Gouveia

Que a mandou sair em Seia e nunca mais olhou para trás

Sem armar giga cantou-lhe uma cantiga

Deixou-a de barriga e arrancou sem dar sinal

Sem dois tostões deu por ela aos trambolhões

Junto ao porto de Leixões com uma filha e um ucal

Sacou dinheiro a um velho engenheiro

E escondeu-se num cargueiro que rumava à capital

Chegou-se à proa e quase achou que a vida é boa

Ao ver as luzes de Lisboa lindas como num postal

Entre destratos, desaforos, desacatos

Varreu escadas, lavou pratos, numa tasca do Cacém

Entregou-se a um tratante de Pedrouços

Saído dos calabouços que a deixou sem um vintém

No Intendente tropeçou numa vidente

Que jurou que mais à frente, a sorte havia de sorrir

A cartomante uma velha de turbante

Intuiu pelo semblante um futuro a reluzir

Na luz da vela, viu a luz de Gabriela

Com direito até a estrela no passeio de Hollywood

Em poucos dias por misteriosas vias

Cumpriam-se as profecias mais certeiras que o talmude

Nessa semana foi pra América, fez fama

Privou com a Primeira Dama, levou a filha ao Hawai

E em Gouveia passa um louco, volta e meia

Que blasfema e cambaleia e garante que é o pai

E na Murtosa o padre faz menção honrosa

Festa, missa, pompa e prosa que hoje é feriado local

Em Lourizela há uma estátua em honra dela

Aqui nasceu Gabriela o grande orgulho nacional

Em Lourizela, bem de frente para capela

Para sempre Gabriela como quem diz ah pois é

E o engenheiro confere o bolso traseiro

Vê que lhe faltou dinheiro e volta para Leça a pé

Sem comentários: