domingo, abril 03, 2022

Dínamo de Kiev: A Seleção de Futebol Que Preferiu Morrer...

O Dínamo de Kiev
Na Ucrânia, os jogadores do FC Start (nome clandestino do Dínamo de Kiev), hoje, são heróis da Pátria e o seu exemplo de coragem é ensinado nas Escolas e Colégios. Os possuidores de entradas daquela fatídica partida têm direito a assento gratuito no estádio do Dínamo de Kiev

A história do futebol mundial inclui milhares de episódios emocionantes e comoventes, mas seguramente nenhum seja tão terrível como o protagonizado pelos jogadores do Dínamo de Kiev nos anos 40. 

Os jogadores jogaram uma partida sabendo que se a ganhassem seriam assassinados e, no entanto, decidiram ganhar. Na morte deram uma lição de coragem, de vida e honra, que não encontra, pelo seu dramatismo, outro caso similar no mundo.

Para compreender a sua decisão, é necessário conhecer como chegaram a jogar aquela decisiva partida, e porque é que um simples jogo de futebol representou para eles o momento crucial das suas vidas.

Tudo começou em 19 de Setembro de 1941, quando a cidade de Kiev (hoje capital ucraniana) foi ocupada pelo exército nazi. Os homens de Hitler adotaram um regime de castigo impiedoso tendo arrasado tudo.

A cidade converteu-se num inferno controlado pelos nazis, e durante os meses seguintes chegaram centenas de prisioneiros de guerra, que não tinham permissão para trabalhar nem viver nas casas. Assim, todos vagavam pelas ruas na mais absoluta indigência. Entre aqueles soldados doentes e desnutridos, estava Nikolai Trusevich, que tinha sido guarda - redes do Dínamo.

Josef Kordik, um padeiro alemão a quem os nazis não perseguiam, precisamente pela sua origem, era um fã fanático do Dínamo. Um dia caminhava pela rua quando, surpreso, olhou para um mendigo e de imediato se deu conta de que era o seu ídolo: o gigante Trusevich.

Ainda que fosse ilegal, mediante artimanhas, o comerciante alemão enganou os nazis e contratou o guarda - redes para que trabalhasse na sua padaria. A sua ânsia em ajudá-lo foi valorizada pelo jogador, que agradecia a possibilidade de se alimentar e dormir debaixo de um teto. Ao mesmo tempo, Kordik emocionava-se por ter feito amizade com a estrela da equipa de que era fã.

Kiev destruída dura a 2ª Guerra Mundial

Na convivência, as conversas giravam sempre à volta do futebol e do Dínamo, até que o padeiro teve uma ideia genial: pediu a Trusevich, que em lugar de trabalhar como ele, amassando pães, se dedicasse a procurar o resto dos seus colegas. Não só continuaria a pagar-lhe, como juntos podiam salvar os outros jogadores.

Trusevich percorreu o que restara da cidade devastada dia e noite, e entre feridos e mendigos foi descobrindo, um a um, os seus amigos do Dínamo. Kordik deu trabalho a todos, esforçando-se para que ninguém descobrisse a manobra. Trusevich encontrou também alguns rivais do campeonato russo, três jogadores da Lokomotiv, e também os resgatou. Em poucas semanas, a padaria escondia entre os seus empregados uma equipa completa.

Reunidos pelo padeiro, os jogadores não demoraram a dar o passo seguinte, e decidiram, alentados pelo seu protetor, voltar a jogar. Era, além de escapar aos nazis, a única coisa que sabiam fazer bem. Muitos tinham perdido as suas famílias às mãos do exército de Hitler, e o futebol era a última coisa que  mantinham das suas vidas anteriores.

Como o Dínamo estava proibido, deram um novo nome à equipa. Assim nasceu o FC Start, que através de contactos alemães começou a desafiar equipas de soldados inimigos e seleções formadas no III Reich.

Em 7 de Junho de 1942, jogaram a sua primeira partida. Apesar de estarem famintos e cansados por terem trabalhado toda a noite, venceram por 7 a 2. O seu rival seguinte foi a equipa de uma guarnição húngara, a quem ganharam por 6 a 2. Depois meteram 11 golos a uma equipa romena.

A coisa começou a ficar séria quando em 17 de Julho enfrentaram uma equipa do exército alemão e a golearam por 6 a 2. Muitos nazis começaram a ficar aborrecidos pela crescente fama do grupo de empregados da padaria e procuraram uma equipa melhor para os derrotar. Trouxeram da Hungria o MSG com a missão de os derrotar, mas o FC Start ganhou mais uma vez por 5 a 1, e mais tarde, ganhou por 3 a 2 na revanche.

Em 6 de Agosto, convencidos da sua superioridade, os alemães prepararam uma equipa com membros da Luftwaffe, o Flakelf, que era uma grande equipa, utilizada como instrumento de propaganda de Hitler.

Os nazis tinham arranjado um rival à altura para acabar com o FC Start, que já gozava de enorme popularidade entre o sofrido povo, refém dos nazis. A surpresa foi grande, porque apesar da violência e da falta de desportivismo dos alemães, o Start venceu por 5 a 1.

Depois desta escandalosa derrota da equipa de Hitler, os alemães descobriram a manobra do padeiro. Assim, de Berlim chegou uma ordem para acabar com todos eles, inclusive com o padeiro, mas os hierarcas nazis locais não se contentaram com isso. Não queriam que a última imagem fosse uma derrota, porque acreditavam que se fossem simplesmente assassinados não fariam nada mais que perpetuar a derrota alemã.

A superioridade da raça ariana, em particular no desporto, era uma obsessão para Hitler e para os altos comandos. Por essa razão, antes de fuzilá-los, queriam derrotar a equipa num jogo.

Com um clima tremendo de pressão e ameaças de todas as partes, anunciou-se a revanche para 9 de Agosto, no repleto estádio Zenit. Antes do jogo, um oficial das SS entrou no vestiário e disse em russo: "Vou ser o juiz do jogo, respeitem as regras e saúdem com o braço levantado", exigindo que eles fizessem a saudação nazi.

Já no campo, os jogadores do Start (camisa vermelha e calção branco) levantaram o braço, mas no momento da saudação, levaram a mão ao peito e no lugar de dizer: "Heil Hitler !", gritaram - "Fizculthura!", uma expressão soviética que proclamava a cultura física.

Seleção Alemã

Os alemães (camisa branca e calção negro) marcaram o primeiro golo, mas o Start chegou ao intervalo a ganhar por 2 a 1.

Receberam novas visitas no vestiário, desta vez com armas e advertências claras e concretas: "Se vocês ganharem, não sai ninguém vivo". Ameaçou um outro oficial das SS. Os jogadores ficaram com muito medo e até se propuseram a não voltar para o segundo tempo. Mas pensaram nas suas famílias, nos crimes que foram cometidos, na gente sofrida que nas arquibancadas gritava desesperadamente por eles e decidiram, sim, jogar.

Deram um verdadeiro baile aos nazis. E no final da partida, quando ganhavam por 5 a 3, o atacante Klimenko ficou cara a cara com o guarda - redes alemão. Driblou-o deixando - o estatelado no chão e, ao ficar em frente à trave, quando todos esperavam o golo, deu meia volta e chutou a bola para o centro do campo. Foi um gesto de desprezo, de deboche, de superioridade total. O estádio veio abaixo.

Como toda a Kiev poderia a vir a falar da façanha, os nazis deixaram que saíssem do campo como se nada tivesse ocorrido. Inclusive o Start jogou dias depois e goleou o Rukh por 8 a 0. Mas o final já estava traçado: depois desta última partida, a Gestapo visitou a padaria.

O primeiro a morrer torturado em frente de todos os outros foi Kordik, o padeiro. Os demais presos foram enviados para os campos de concentração de Siretz. Ali mataram brutalmente  Kuzmenko, Klimenko e Trusevich, que morreu vestido com a camiseta do FC Start. Goncharenko e Sviridovsky, que não estavam na padaria naquele dia, foram os únicos que sobreviveram, escondidos, até à libertação de Kiev em Novembro de 1943. O resto da equipa foi torturado até a morte.

Monumento aos heróis do FC Start. 

Ainda hoje, os possuidores de entradas daquela partida têm direito a um lugar gratuito no estádio do Dínamo de Kiev. Nas escadarias do clube, conserva-se atualmente um monumento que saúda e recorda aqueles heróis do FC Start, os indomáveis prisioneiros de guerra do Exército Vermelho aos quais ninguém pode derrotar numa dezena de históricas partidas, entre 1941 e 1942.

Foram todos mortos entre torturas e fuzilamentos, mas há uma lembrança, uma fotografia que, para os torcedores do Dínamo, vale mais que todas as jóias do Kremlin: a única foto que se conserva da heróica equipa do Dinamo e o nome dos seus jogadores (em cima). Goncharenko e Sviridovsky, os únicos sobreviventes, junto ao monumento que recorda os seus colegas (ao lado).

Na Ucrânia, os jogadores do FC Start são hoje heróis da pátria e o seu exemplo de coragem é ensinado nas Escolas.

No estádio Zenit uma placa diz: "Aos jogadores que morreram com a cabeça levantada ante o invasor nazista".


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