Ainda a propósito do Acordo Ortográfico proponho-lhe a leitura de um texto de Manuel Halpern feito com muito humor. A nova ortografia foi o ponto de partida para este "Um cê a mais".
Manuel Halpern é um jornalista e crítico do Jornal de Letras, Artes e Ideias. Manuel Halpern escreve preferencialmente sobre música e cinema, além de manter, desde há dez anos, a coluna fixa O Homem do Leme.
Este jornalista é licenciado em Comunicação Social, pela Universidade Católica, com pós-graduação em Crítica de Cinema e Música Pop, na Faculdade Ramon Lull de Barcelona. Colaborou, entre outros, com a Visão, o Público, o Blitz, a Antena 2, o Diário de Notícias e o Corriere della Sera.
"Um cê a mais"
"Quando eu escrevo a palavra ação, por magia ou pirraça, o computador retira automaticamente o c na pretensão de me ensinar a nova grafia. De forma que, aos poucos, sem precisar de ajuda, eu próprio vou tirando as consoantes que, ao que parece, estavam a mais na língua portuguesa. Custa-me despedir-me daquelas letras que tanto fizeram por mim. São muitos anos de convívio. Lembro-me da forma discreta e silenciosa como todos estes cês e pês me acompanharam em tantos textos e livros desde a infância. Na primária, por vezes gritavam ofendidos na caneta vermelha da professora: não te esqueças de mim! Com o tempo, fui-me habituando à sua existência muda, como quem diz, sei que não falas, mas ainda bem que estás aí. E agora as palavras já nem parecem as mesmas. O que é ser proativo? Custa-me admitir que, de um dia para o outro, passei a trabalhar numa redação, que há espetadores nos espetáculos e alguns também nos frangos, que os atores atuam e que, ao segundo ato, eu ato os meus sapatos.
Depois há os intrusos, sobretudo o erre, que tornou algumas palavras arrevesadas e arranhadas, como neorrealismo ou autorretrato. Caíram hifenes e entraram erres que andavam errantes. É uma união de facto, para não errar tenho a obrigação de os acolher como se fossem família. Em 'há de' há um divórcio, não vale a pena criar uma linha entre eles, porque já não se entendem. Em veem e leem, por uma questão de fraternidade, os és passaram a ser gémeos, nenhum usa chapéu. E os meses perderam importância e dignidade, não havia motivo para terem privilégios, janeiro, fevereiro, março são tão importantes como peixe, flor, avião. Não sei se estou a ser suscetível, mas sem p algumas palavras são uma autêntica deceção, mas por outro lado é ótimo que já não tenham.
As palavras transformam-nos. Como um menino que muda de escola, sei que vou ter saudades, mas é tempo de crescer e encontrar novos amigos. Sei que tudo vai correr bem, espero que a ausência do cê não me faça perder a direção, nem me fracione, nem quero tropeçar em algum objeto abjeto. Porque, verdade seja dita, hoje em dia, não se pode ser atual nem atuante com um cê a atrapalhar".
Manuel Halpern
4 comentários:
Com um sorriso adoto (credo!) desde já esta visao esperançosa (com ç...?) na nova vida :)
Maria
Porquê????? Por que temos que aceitar esta barbaridade????? Esta NÃO é a nossa língua, não é a língua originária de Portugal.
Escrever "ator", "ação"... é ridículo! São terminogias criadas por brasileiros (também falantes do português, mas que o foram deturpando - "esporte", "copirraite"... entre outras pérolas...) Esta estupidez só vingará se o POVO PORTUGUES quiser. Pela minha parte, jamais irei escrever a minha língua com erros ortográficos, sim porque para mim não há um acordo, há a introdução de erros numa língua lindíssima e que têm obrigatoriamente que ser preservada!! E se não formos nós a proteger a nossa língua, ela vai acabar por morrer, por desaparecer...
Formidável.
Eu recuso-me a despedir com optimismo das letras que me viram crescer e me ajudaram com tanto carinho, a ensinar com correcção outros meninos que hoje se terão que despedir delas para estarem "atualizados"
Se começar a escrever de outro modo vou sentir-me uma traidora!Tanto desvelo na escola,tanto cuidado em não dar erros e agora vou pôr tudo em causa?não,vou continuar a escrever como aprendi.é que sou do tempo em que erro ortográfico dava direito a palmatoada!
Linda Ferreira
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