quinta-feira, dezembro 08, 2022

Nossa Senhora da Conceição

Tenho dez anos

e caminho de volta à minha casa.

Venho da escola, da igreja,

da casa de Helena Reis, não sei,

mas piso, é certo, sobre trilha de areia,

pensando: vou ser artista.

Tenho um vestido, um sapato

e uma visão que não reconheço poética:

um mamoeiro com frutas sob muito sol e pardais.

Não a perderia porque era o bom-sem-fim,

como rosais, uma palavra anzol,

puxava calor, meio-dia, presas de ofídio,

diminuta aflição, gotículas,

porque a Virgem esmagava o demônio

com seu calcanhar rosado.

Só porque achei sua binga e seu pito

meu pai falou: eta menina de ouro!

Foi injusto outras vezes, mas perdeu tardes

atrás de sabugueiro para curar minha tosse.

Parece que vou entristecer-me,

desanimada de lavar hortaliças,

tentada ao jejum mais duro,

não como, não falo, não rio,

nem que o papa se vista de baiana.

Virgem Maria! o tempo quer me comer,

virei comida do tempo!

Me ajuda a parir esta ninhada de vozes,

me ajuda, senão

este conluio de sombras me sequestra,

me rouba o olho antigo e a paixão viva.

Adélia Prado

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