quinta-feira, março 29, 2012

Um tempo sem nome

Para além da música Essa Pequena, o namoro do Chico Buarque com a cantora ruiva Thais Gulin rendeu, também, a interessante crónica UM TEMPO SEM NOME da escritora
Rosiska Darcy de Oliveira sobre o novo conceito de envelhecer. Ora veja!

"Um tempo sem nome"
"Com seu cabelo cinza, rugas novas e os mesmos olhos verdes,
cantando madrigais para a moça do cabelo cor de abóbora, Chico Buarque
de Holanda vai bater de frente com as patrulhas do senso comum. Elas
torcem o nariz para mais essa audácia do trovador. O casal cinza e cor
de abóbora segue seu caminho e tomara que ele continue cantando eu sou
tão feliz com ela sem encontrar resposta ao que será que dá dentro da
gente que não devia.

Afinal, é o olhar estrangeiro que nos faz estrangeiros a nós
mesmos e cria os interditos que balizam o que supostamente é ou deixa
de ser adequado a uma faixa etária. O olhar alheio é mais cruel que a
decadência das formas. É ele que mina a autoimagem, que nos constitui
como velhos, desconhece e, de certa forma, proíbe a verdade de um
corpo sujeito à impiedade dos anos sem que envelheça o alumbramento
diante da vida .

Proust, que de gente entendia como ninguém, descreve o
envelhecer como o mais abstrato dos sentimentos humanos. O príncipe
Fabrizio Salinas, o Leopardo criado por Tommasi di Lampedusa, não
ouvia o barulho dos grãos de areia que escorrem na ampulheta. Não fora
o entorno e seus espelhos, netos que nascem, amigos que morrem, não
fosse o tempo um senhor tão bonito quanto a cara do meu filho, segundo
Caetano, quem, por si mesmo, se perceberia envelhecer? Morreríamos nos
acreditando jovens como sempre fomos.

A vida sobrepõe uma série de experiências que não se anulam, ao
contrário, se mesclam e compõem uma identidade. O idoso não anula
dentro de si a criança e o adolescente, todos reais e atuais,
fantasmas saudosos de um corpo que os acolhia, hoje inquilinos de uma
pele em que não se reconhecem. E, se é verdade que o envelhecer é um
fato e uma foto, é também verdade que quem não se reconhece na foto,
se reconhece na memória e no frescor das emoções que persistem. É
assim que, vulcânica, a adolescência pode brotar em um homem ou uma
mulher de meia-idade, fazendo projetos que mal cabem em uma vida
inteira.

Essa doce liberdade de se reinventar a cada dia poderia
prescindir do esforço patético de camuflar com cirurgias e botoxes
obras na casa demolida a inexorável escultura do tempo. O medo pânico
de envelhecer, que fez da cirurgia estética um próspero campo da
medicina e de uma vendedora de cosméticos a mulher mais rica do mundo,
se explica justamente pela depreciação cultural e social que o avançar
na idade provoca.

Ninguém quer parecer idoso, já que ser idoso está associado a
uma sequência de perdas que começam com a da beleza e a da saúde.
Verdadeira até então, essa depreciação vai sendo desmentida por uma
saudável evolução das mentalidades: a velhice não é mais o que era
antes. Nem é mais quando era antes. Os dois ritos de passagem que a
anunciavam, o fim do trabalho e da libido, estão, ambos, perdendo
autoridade. Quem se aposenta continua a viver em um mundo
irreconhecível que propõe novos interesses e atividades. A curiosidade
se aguça na medida em que se é desafiado por bem mais que o
tradicional choque de gerações com seus conflitos e desentendimentos.
Uma verdadeira mudança de era nos leva de roldão, oferecendo-nos ao
mesmo tempo o privilégio e o susto de dela participar.

A libido, seja por uma maior liberalização dos costumes, seja
por progressos da medicina, reclama seus direitos na terceira idade
com uma naturalidade que em outros tempos já foi chamada de despudor.
Esmaece a fronteira entre as fases da vida. É o conceito de velhice
que envelhece. Envelhecer como sinônimo de decadência deixou de ser
uma profecia que se autorrealiza. Sem, no entanto, impedir a lucidez
sobre o desfecho.

Meu tempo é curto e o tempo dela sobra, lamenta-se o trovador,
que não ignora a traição que nosso corpo nos reserva. Nosso melhor
amigo, que conhecemos melhor que nossa própria alma, companheiro dos
maiores prazeres, um dia nos trairá, adverte o imperador Adriano em
suas memórias escritas por Marguerite Yourcenar.

Todos os corpos são traidores. Essa traição, incontornável, que
não é segredo para ninguém, não justifica transformar nossos dias em
sala de espera, espectadores conformados e passivos da degradação das
células e dos projetos de futuro, aguardando o dia da traição.Chico, à
beira dos setenta anos, criando com brilho, ora literatura , ora
música, cantando um novo amor, é a quintessência desse fenômeno, um
tempo da vida que não se parece em nada com o que um dia se chamou de
velhice. Esse tempo ainda não encontrou seu nome. Por enquanto podemos
chamá-lo apenas de vida".
Rosiska Darcy de Oliveira, O Globo, 21/01/12

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