sexta-feira, dezembro 06, 2019

Donald Trump Segundo Eça de Queiroz

Sugiro-lhe que leia a crónica que se segue, e que é da jornalista portuguesa, Maria Filomena Mónica.
"Em múltiplas ocasiões, o actual Presidente dos EUA tem declarado que a América é dos americanos, o que dá vontade de rir quando sabemos descender ele de emigrantes — a mãe era escocesa e o avô paterno alemão — e estar casado com alguém que nasceu na Eslovénia que então fazia parta da Jugoslávia. Apesar de não usar o termo, Trump é adepto do ‘nativismo’, uma corrente que subterraneamente atravessa a História daquele país. Os seus adeptos proclamam defender os interesses dos americanos contra os imigrantes, indiscriminadamente retratados como criminosos: todos os mexicanos seriam violadores e todos os muçulmanos terroristas.

A política contra a emigração de Trump, coroada pela promessa da construção de um muro que separe os EUA do México, tem sido amplamente criticada, mas ninguém o fez como Eça de Queiroz. Estou consciente de que este já morreu, mas posso, sem medo de errar, transmitir aos leitores o que pensaria das afirmações do actual Presidente dos EUA. Numa série de artigos, publicados num jornal brasileiro em 1896, eis a sua opinião relativamente à ideia da “América para os americanos”. Claro que existiam americanos, escreveu, mas estes não eram aqueles como tal considerados, mas sim os algonquins, os iroqueses, os apalaches, os incas, os caraíbas, os guaranis e toda a gente patagónica, isto é, os legítimos donos do território cujos desertos tinham povoado.

Por se pensar que eles maculavam o esplendor da civilização ocidental, os nativos foram sendo eliminados ao longo dos anos. Em todo o vasto continente não existe, nunca existiu, uma única cidade onde possamos descobrir um ‘americano’ genuíno. Para vermos este espécimen seria necessário irmos para lá do país dos búfalos, onde, com sorte, encontraríamos um homem de tez cor de cobre e com longas guedelhas corredias.

Faz agora 400 anos que um navio, o “Mayflower”, transportou para a então colónia inglesa 102 passageiros, a maioria dos quais eram puritanos que não desejavam integrar-se na Igreja Anglicana, tendo decidido trocar o seu país pelo Novo Mundo. Acontece que o continente onde se instalaram estava povoado.

Custa-me entender a forma como uma nação tão diversa nas suas origens quanto os EUA esqueceu o que está escrito na Estátua da Liberdade: “Give me your tired, your poor,/ Your huddled masses yearning to breathe free,/ The wretched refuse of your teeming shore./ Send these, the homeless, tempest-tossed to me/, I lift my lamp beside the golden door!” [Dai-me os vossos pobres fatigados,/ As vossas multidões que desejam respirar livremente/ Os miseráveis detritos das vossas praias cheias/ Enviai-os até mim, esses sem-abrigo despejados pelas tempestades,/ A minha luz os guiará até ao portão dourado.] A autora do soneto, de onde, em 1883, estas linhas foram retiradas, é Emma Lazarus, descendente de judeus sefarditas portugueses. Soube-me bem saber isto."
Maria Filomena Mónica - Expresso, 16 de Novembro de 2019

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