sábado, outubro 08, 2011

Memórias de uma aula no Liceu de Setúbal

Há professores e há aulas que nos marcaram ou marcam. Esta aula teria celebrado dia 4 de outubro mais um aniversário. Este professor diferente, deixou uma marca em Portugal, na Galiza, nos países lusófonos, enfim... no Mundo. Aqui ficam as "Memórias de uma aula no Liceu de Setúbal".

"Barreiro, 4 de Outubro de 1967 - (Quarta-feira)"

Segundo dia de aulas. Continua o desassossego, com o pessoal a trocar beijos, abraços e confidências, depois desta longa separação que foram 3 meses e meio de férias. Estávamos todos fartos do verão, com saudades uns dos outros. A sala é a mesma do ano passado, no
1º andar e cheirava a nova, tudo encerado e polido, apesar do material já ser mais do que velho. Somos o 7.º A e como não chumbou nem veio ninguém de novo, a pauta é exactamente igual à do ano passado. Eu sou o n.º 34, e fico sentada na segunda fila, do lado da janela, cá atrás, que é o lugar dos mais altos.
Hoje tivemos, pela primeira vez, Organização Política e apareceu-nos um professor novo, acho que é a primeira vez que dá aulas em Setúbal, dizem que veio corrido de um liceu de Coimbra, por causa da política. Já ontem se falava à boca cheia dele, havia malta muito excitada e contente porque dizem que e
le é um fadista afamado. Tenho realmente uma vaga ideia de ouvir o meu tio Diamantino falar dele, mas já não sei se foi por causa da cantoria se por causa da política. A Inêscontou que ouviu o pai comentar, em casa, que o homem é todo revolucionário, arranja sarilhos por todo o lado onde passa. Ela diz que ele já esteve preso por causa da política, é capaz de ser comunista. Diferente dos outros professores, é de certeza. Quando entrou na sala, já tinha dado o segundo toque, estava quase no limite da falta. Entrou por ali a dentro, todo despenteado, com uma gabardine na mão e enquanto a atirava para cima da secretária, perguntou-nos:
- Vocês são o 7.º A, não são? Desculpem o atraso mas enganei-me e fui parar a outra sala. Não faz mal. Se vocês chegarem atrasados também não vos vou chatear.

Tinha um ar simpático, ligeiro, um visual que não se enquadrava nada com a imagem de todos os outros professores. Deu para perceber que as primeiras palavras, aliadas à postura solta e descontraída, começavam a cativar toda a gente. A Carolina virou-se para trás e disse-me que
já o tinha visto na televisão, a cantar Fado de Coimbra. Realmente o rosto não me era estranho. É alto, feições correctas, embora os dentes não sejam um modelo de perfeição e é bem parecido, digamos que um homem interessante para se olhar. O Artur soprou-me que ele deve ter uns 36 anos e acho que sim, nota-se que já é velho. Depois das primeiras palavras, sentou-se na secretária, abriu o livro de ponto, rabiscou o que tinha a escrever e ficou uns cinco minutos, em
silêncio, a olhar o pátio vazio, através das janelas da sala, impecavelmente limpas.
Enquanto ele estava nesta espécie de marasmo nós começámos a bichanar uns com os outros, cada um emitindo a sua opinião, fazendo conjecturas. Às tantas, o bichanar foi subindo de tom e já era uma algazarra tão grande que parece tê-lo acordado. Outro qualquer
professor já nos teria pregado um raspanete, coberto de ameaças, mas ele não disse nada, como se não tivesse ouvido ou, melhor, não se importasse. Aliás, aposto que nem nos ouviu. O ar dele, enquanto esteve ausente, era tão distante que mais parecia ter-se, efectivamente, evadido da sala. Quando recomeçou a falar connosco, em pé, em cima do estrado, já tinha ganho o primeiro round de simpatia. Depois, veio o mais surpreendente:
- Bem, eu sou o vosso novo professor de Organização Política, mas devo dizer-vos qu
e não percebo nada disto. Vocês já deram isto o ano passado, não foi? Então sabem, de certeza, mais que eu. Gargalhada geral.
- Podem rir porque é verdade. Eu não percebo nada disto, as minhas disciplinas, aquelas em que me formei, são História e Filosofia, não tenho culpa que me tivessem posto aqui, tipo castigo, para dar uma matéria que não conheço, nem me interessa. Podia estudar para vir aqui desbobinar, tipo papagaio, mas não estou para isso. Não entro em palhaçadas. Voltámos a rir, numa sonora gargalhada, tipo coro afinado, mas ele ficou impávido e ser
eno. Continuava a mostrar um semblante discreto, calmo, simpático.
- Pois é, não vou sobrecarregar a minha massa cinzenta com coisas absolutamente inúteis e falsas. Tudo isto é uma fantochada sem´interesse. Não vou perder um minuto do meu estudo com esta porcaria.
Começámos a olhar uns para outros, espantados; nunca na vida nos tinha passado pela frente um professor com tamanha ousadia.
- Eu estudaria, isso sim, uma Organização Política que funcionasse, como noutros países acontece, não é esta fantochada que não passa de pura teoria. Na prática não existe, é uma Constituição carregada de falsidade. Portugal vive numa democracia de fachada, este regime que nos governa é uma ditadura desumana e cruel.
Não se ouvia uma mosca na sala. Os rostos tinham deixado cair o sorriso e estavam
agora absolutamente atónitos, vidrados no rosto e nas palavras daquele homem ímpar. O que ele nos estava a dizer é o que ouvimos comentar, todos os dias, aos nossos pais, mas sempre com as devidas recomendações para não o repetirmos na rua porque nunca se sabe quem ouve. A Pide persegue toda a gente
como uma nuvem de fumo branco, que se sente mas não se apalpa.
- Repito: eu não percebo nada desta disciplina que vos venho leccionar, nem quero perceber. Estou-me nas tintas para esta porcaria. Mas, atenção, vocês é outra coisa. Vocês vão ter que estudar porque, no final do ano, vão ter que fazer exame para concluírem o vosso 7.º ano e poderem entrar na Faculdade. Isso, vocês têm que fazer. Estudar. Para serem homens e mulheres cultos para poderem combater, cada um onde estiver, esta ditadura infame que está a destruir a vossa pátria e a dos vossos filhos. Vocês são o amanhã e são vocês que têm que lutar por um novo país. Não vão precisar de mim para estudar esta materiazinha de chacha, basta estudarem umas horas e empinam isto num instante. Isto não vale nada. Eu venho dar aulas, preciso de vir, preciso de ganhar a vida, mas as minhas aulas vão ser aulas de cultura e política geral. Vão ficar a saber que há países onde existem regimes diferentes deste, que nos oprime, países onde há liberdade de pensamento e de expressão, educação para todos, cuidados de saúde que não são apenas para os privilegiados, enfim, outras coisas que a seu tempo vos ensinarei. Percebem? Nós temos que aprender a não ser autómatos, a pensar pela nossa cabeça. O Salazar quer fazer de vocês, a juventude deste país, carneiros, mas eu não vou deixar que os meus alunos o sejam. Vou abrir-lhes a porta do conhecimento, da cultura e da verdade. Vou ensinar-lhes que, além fronteiras, há outros mundos e outras hipóteses de vida, que não se configuram a esta ditadura de miséria social e cultural.
Outra coisa: vou ter que vos dar um ponto por período porque vocês têm que ter notas para ir a exame. O ponto que farei será com perguntas do vosso livro que terão que ter a paciência de estudar. A matéria é uma falsidade do princípio ao fim, mas não há volta a dar, para atingirem
os vossos mais altos
objectivos. Têm que estudar. Se quiserem copiar é com vocês, não vou andar, feita toupeira, a fiscalizá-los, se quiserem trazer o livro e copiar, é uma decisão vossa, no entanto acho que devem começar a endireitar este país no sentido da honestidade, sim porque o nosso país é um país de bufos, de corruptos e de vigaristas. Não falo de vocês, jovens, falo dos homens da minha idade e mais velhos, em qualquer quadrante da sociedade. Nós temos sempre que mostrar o que somos, temos que ser dignos connosco para sermos dignos com os outros. Por isso, acho que não devem copiar. Há que criar
princípios de honestidade e isso começa em vocês, os futuros homens e mulheres de Portugal. Não concordam? Bem, por hoje é tudo, podem sair.
Vemo-nos na próxima aula.

Espantoso. Quando ele terminou estava tudo lívido, sem palavras. Que fenómeno é este que aterrou em Setúbal? Já me esquecia de escrever. Esta ave rara, o nosso professor de Organização Política, chama-se Zeca Afonso".
Hélida Carvalho Santos

sexta-feira, outubro 07, 2011

HISTÓRIAS DE MARINHEIROS

Há dias de inverno sem neve em que o mar é parente
de zonas montanhosas, encolhido sob plumagem cinza,
azul só por um minuto, longas horas com ondas quais pálidos
linces, buscando em vão sustento nas pedras de à beira-mar.

Em dias como estes saem do mar restos de naufrágios em busca
de seus proprietários, sentados no bulício da cidade, e afogadas
tripulações vêm a terra, mais ténues que fumo de cachimbo.

(No Norte andam os verdadeiros linces, com garras afiadas
e olhos sonhadores. No Norte, onde o dia
vive numa mina, de dia e de noite.

Ali, onde o único sobrevivente pode estar
junto ao forno da Aurora Boreal escutando
a música dos mortos de frio).
1954 - Thomas Tranströmer - Prémio Nobel da Literatura 2011

quinta-feira, outubro 06, 2011

A Crise e o Humor


"Portugal 2011, Ano Nacional da Crise" é um projecto de dois criativos (um designer e um redator) que decidiram criar produtos que nos levassem a sorrir com a crise. O projecto envolve produtos como cartões de visita, cartazes, sacos para compras, gravatas, etc.
O humor não paga as contas, mas, ajuda-nos a superar este quotidiano cinzentão.
Ouça e veja agora os objectivos destes amigos: João Madeira e Paulo Freitas.

quarta-feira, outubro 05, 2011

Dois Poetas da República

Guerra Junqueiro e Antero de Quental foram dois dos poetas que representam a poesia com orientação política republicana.
Antero Quental (Ponta Delgada, 1842 — 1891) foi um escritor e poeta de Portugal que teve um papel importante no movimento da Geração de 70.
Guerra Junqueiro (Freixo de Espada à Cinta,1850 — Lisboa, 1923) foi bacharel formado em direito pela Universidade de Coimbra, alto funcionário administrativo, político, deputado, jornalista, escritor e poeta. Foi o poeta mais popular da sua época e o mais típico representante da chamada "Escola Nova". Poeta panfletário, a sua poesia ajudou criar o ambiente revolucionário que conduziu à implantação da República (em 5 de outubro de 1910).“ O fim duma nação é derramar justiça, divulgar virtude, criar formosura,
produzir ciência
." ( Discurso de Guerra Junqueiro)O que há de mais baixo no homem, a imbecilidade, a cobiça – gula de porco, veneno de réptil, cinismo de macaco, rancor de fera – eis o governo da nação, eis o guia do povo, eis a norma da pátria”. (Ibid.)
Quem sobre a terra portuguesa defender a justiça, pugnar pelo direito ou batalhar pela verdade, granjeia em premeia a calúnia, o cárcere, o desterro, a miséria e a morte”. (Ibid.)
Foram poucos mas marcaram uma época. Estes poetas pretendiam através dos seus versos lutar por uma causa e ajudar uma mudança político-social que vinha florescendo em Portugal. É um erro, contudo, pensar que todos os poetas que viveram o acontecimento lutaram por ele nos seus escritos.
O projecto de leitura de poesia em língua portuguesa “Jograis do Atlântico”, formado por Francisco Félix Machado e Edite Gil preparou, no âmbito do centenário da Primeira República, uma selecção de textos que divulgou durante aquelas comemorações . Aqui lhes deixo dois vídeos alusivos a este facto e a estes poetas.


terça-feira, outubro 04, 2011

Dados biográficos

Mas que dizer do poeta
Numa prova escolar?
Que ele é meio pateta
E não sabe rimar ?
Que veio de Itabira,
Terra longe e ferrosa ?
E que seu verso vira,
De vez em quando, prosa ?
Que é magro, calvo, sério
(na aparência ) e calado,
com algo de minério
não de todo britado?
Que encontrou no caminho
Uma pedra e, estacando,
Muito riso escarninho
O foi logo cercando?
Que apesar dos pesares
Conserva o bom-humor
Caça nuvens nos ares,
Crê no bem e no amor ?

Mas que dizer do poeta
Numa prova escolar
Em linguagem discreta
Que lhe saiba agradar? (1)
Carlos Drummond de Andrade - (1) Viola de bolso II

segunda-feira, outubro 03, 2011

"Lua nha Testemunha"

Fique com Nuno Guerreiro e Nancy Vieira em "Lua nha testemunha" (letra e música
de Dany Silva ).
Nuno Guerreiro (1972) é um cantor português e ex-vocalista na banda Ala dos Namorados, onde ganhou enorme popularidade. Nuno é um contra-tenor, pelo que a sua voz lhe permite explorar diversas sonoridades. Possui assim, a capacidade de interpretar repertório barroco - oratória, árias de Handel ou Purcell, assim como fado, pop ou música soul. Estudou canto lírico no Conservatório Nacional português, onde também obteve o seu diploma como bailarino profissional
Nancy Vieira está ligada a Cabo Verde e à Guiné - Bissau. Tem três discos editados – Nôs Raça, Segred e Lus e tem cantado em Portugal, Cabo Verde e um pouco por todo o mundo. A sua voz tão peculiar tem sido pretexto para ser convidada a participar em discos e espectáculos de inúmeros artistas de entre os quais se destacam Rui Veloso, Ala dos Namorados e Dany Silva.

"Lua nha Testemunha" (letra)

Bô ca ta pensa nha cretcheu
Nem bô ca ta imaginá
O que longe di bô `m tem sofridoPergunta lua na céu, lua nha companheira di solidão


Lua vagabunda di espaço, qui conchê tudo nha vida
Nha disventura, ele qui ta contabo nha cretcheu

Tudo o c`um tem sofrido
Na ausência e na distância.
Mundo, bô tem rolado cu mim
Num jogo di cabra cega, sempre ta persegui`m
Pa cada volta qui mundo dá
El ta traze`m um dor pa`m tchiga más pa Deus
Mundo, bô tem rolado cu mim
Num jogo di cabra cega, sempre ta persegui`m
Pa cada volta qui mundo dá
El ta traze`m um dor pa`m tchiga más pa Deus

domingo, outubro 02, 2011

A Crise By Einstein

"Não pretendemos que as coisas mudem, se fazemos sempre o mesmo. A crise é a melhor benção que pode ocorrer com as pessoas e com os países, porque a crise traz progressos. A criatividade nasce da angústia, como o dia nasce da noite escura. É na crise que nascem as invenções, os descobrimentos e as grandes estratégias. Quem supera a crise, supera-se a si mesmo sem ficar "superado".
Quem atribui à crise os seus fracassos e penúrias, violenta o seu próprio talento e respeita mais os problemas do que as soluções. A verdadeira crise, é a crise da incompetência. O inconveniente das pessoas e dos países é a esperança de encontrar saídas e soluções fáceis. Sem crise não há desafios, sem desafios, a vida é uma rotina, uma lenta agonia. Sem crise não há mérito. É na crise que se aflora o melhor de cada um. Falar de crise é promovê-la, e calar-se sobre ela é exaltar o conformismo. Em vez disso, trabalhemos duro. Acabemos de uma vez com a única crise ameaçadora, que é a tragédia de não querer lutar para superá-la."

Albert Einstein