domingo, fevereiro 07, 2021

O Melro

Recordando uma noite bem passada em casa de amigos, aqui lhe deixo um conto em forma de poema, de Guerra Junqueiro (1850-1923) um dos poetas filosóficos de Portugal, que ali foi muito bem recitado pela Filó.

O melro, eu conheci-o:

Era negro, vibrante, luzidio,

Madrugador, jovial;

Logo de manhã cedo

Começava a soltar, de entre o arvoredo,

Verdadeiras risadas de cristal. 

E assim que o padre-cura abria a porta

Que dá para o passal,

Repicando umas finas ironias,

O melro de entre a horta,

Dizia-lhe: “Bons dias!”

E o velho padre-cura

Não gostava daquelas cortesias.

O cura era um velhote conservado,

Malicioso, alegre, prazenteiro;

Não tinha pombas brancas no telhado,

Nem rosas no canteiro:

Andava às lebres pelo monte, a pé,

Livre de reumatismos,

Graças a Deus, e graças a Noé.

O melro desprezava os exorcismos

Que o padre lhe dizia:

Cantava, assobiava alegremente;

Até que ultimamente

O velho disse um dia:

 

“Nada, já não tem jeito! este ladrão

Dá cabo dos trigais!

Qual seria a razão

Porque Deus fez os melros e os pardais?!”

 

E o melro entretanto,

Honesto como um santo,

Mal vinha no oriente

A madrugada clara,

Já ele andava jovial, inquieto,

Comendo alegremente, honradamente,

Todos os parasitas da seara

Desde a formiga ao mais pequeno inseto.

E apesar disto o rude proletário,

O bom trabalhador,

Nunca exigiu aumento de salário.

 

Que grande tolo o padre confessor!

Foi para a eira o trigo;

E armando uns espantalhos,

Disse o abade consigo:

“Acabaram-se as penas e os trabalhos.”

Mas logo de manhã, maldito espanto!

O abade, ainda na cama,

Ouviu do melro o costumado canto;

Ficou ardendo em chama;

Pega na caçadeira,

Levanta-se de um salto,

E vê o melro a assobiar na eira

Em cima do seu velho chapéu alto!


Chegou a coisa a termo

Que o bom do padre-cura andava enfermo,

Não falava nem ria,

Minado por tão íntimo desgosto;

E o vermelho oleoso do seu rosto

Tornava-se amarelo dia a dia.

E foi tal a paixão, a desventura,

(Muito embora o leitor não me acredite)

Que o bom do padre-cura

Perdera… o apetite!

Andando no quintal um certo dia

Lendo em voz alta o Velho Testamento,

Enxergou por acaso (que alegria!

Que ditoso momento!)

Um ninho com seis melros escondido

Entre uma carvalheira.

 

E ao vê-los exclamou enfurecido:

 

“A mãe comeu o fruto proibido;

Esse fruto era a minha sementeira:

Era o pão, e era o milho;

Transmitiu-se o pecado.

E, se a mãe não pagou, que pague o filho.

É doutrina da Igreja. Estou vingado!”

 

E engaiolando os pobres passaritos

Soltava exclamações:

“É uma praga. Malditos!

Dão me cabo de tudo esses ladrões!

Raios os partam! andai lá que enfim…”

 

E deixando a gaiola pendurada

Continuou a ler o seu latim

Fungando uma pitada.

 

Vinha tombando a noite silenciosa;

E caía por sobre a natureza

Uma serena paz religiosa,

Uma bela tristeza

Harmônica, viril, indefinida.

A luz crepuscular

Infiltra-nos na alma dolorida

Um misticismo heroico e salutar.

As árvores, de luz ainda douradas,

Sobre os montes longínquos, solitários,

Tinham tomado as formas rendilhadas

Das plantas dos herbários.

Recolhiam-se a casa os lavradores.

Dormiam virginais as coisas mansas:

Os rebanhos e as flores,

As aves e as crianças.

Ia subindo a escada o velho abade;

A sua negra, atlética figura

Destacava na frouxa claridade,

Como uma nódoa escura.

E introduzindo a chave no portal

Murmurou entre dentes:

 

“Tal e qual… tal e qual!…

Guisados com arroz são excelentes.”

 

Nasceu a Lua. As folhas dos arbustos

Tinham o brilho meigo, aveludado,

Do sorriso dos mártires, dos justos.

Um eflúvio dormente e perfumado

Embebedava as seivas luxuriantes.

Todas as forças vivas da matéria

Murmuravam diálogos gigantes

Pela amplidão etérea.

São precisos silêncios virginais,

Disposições simpáticas, nervosas,

Para ouvir estas falas silenciosas

Dos mudos vegetais.

As orvalhadas, frescas espessuras

Pressentiam-se quase a germinar.

Desmaiavam-se as cândidas verduras

Nos Magnetismos brancos do luar.

…………………………………………..

…………………………………………..

E nisto o melro foi direito ao ninho.

Para o agasalhar andou buscando

Umas penugens doces como arminho,

Um feltrozito acetinado e brando.

Chegou lá, e viu tudo.

Partiu como uma flecha; e, louco e mudo,

Correu por todo o matagal; em vão!

Mas eis que solta de repente um grito

Indo encontrar os filhos na prisão.

 

“Quem vos meteu aqui?!” O mais velho,

Todo tremente, murmurou então:

 

“Foi aquele homem negro. – Quando veio

Chamei, chamei… Andavas tu na horta…

Ai que susto, que susto! Ele é tão feio!…

Tive-lhe tanto medo!… Abre esta porta,

E esconde-nos debaixo da tua asa!

Olha, já vão florindo as açucenas;

Vamos a construir a nossa casa

Num bonito lugar…

Ai! quem me dera, minha mãe, ter penas

Para voar, voar!”

 

E o melro alucinado

Clamou:

 

“Senhor! Senhor!

É porventura crime ou é pecado

Que eu tenha muito amor

A estes inocentes?!

Ó natureza, ó Deus, como consentes

Que me roubem assim os meus filhinhos,

Os filhos que eu criei!

Quanta dor, quanto amor, quantos carinhos,

Quanta noite perdida

Nem eu sei…

E tudo, tudo em vão!

Filhos da minha vida

Filhos do coração!!…

Não bastaria a natureza inteira,

Não bastaria o céu para voardes,

E prendem-vos assim desta maneira!…

Covardes!

A luz, a luz, o movimento insano

Eis o aguilhão, a fé que nos abrasa…

Encarcerar a asa

É encarcerar o pensamento humano.

A culpa tive-a eu! quase à noitinha

Parti, deixei-os sós…

A culpa tive-a eu, a culpa é minha,

De mais ninguém!… Que atroz!

E eu devia sabê-lo!

Eu tinha obrigação de adivinhar…

Remorso eterno! eterno pesadelo!…

………………………………………….

Falta-me a luz e o ar!… Oh, quem me dera

Ser abutre ou fera

Para partir o cárcere maldito!…

E como a noite é límpida e formosa!

Nem um ai, nem um grito…

Que noite triste! oh, noite silenciosa!…”

 

E a natureza fresca, onipotente,

Sorria castamente

Com o sorriso alegre dos heróis.

Nas sebes orvalhadas,

Entre folhas luzentes como espadas,

Cantavam rouxinóis.

 

Os vegetais felizes

Mergulhavam as sôfregas raízes

A procurar na terra as seivas boas,

Com a avidez e as raivas tenebrosas

Das pequeninas feras vigorosas

Sugando à noite os peitos das leoas.

A lua triste, a lua melancólica,

Desdêmona marmórea,

Rolava pelo azul da imensidade,

Imersa numa luz serena e fria,

Branca como a harmonia,

Pura como a verdade.

E entre a luz do luar e os sons e as flores,

Na atonia cruel das grandes dores,

O melro solitário

Jazia inerte, exânime, sereno,

Bem como outrora a mãe do Nazareno

Na noite do calvário!…

 

Segundo o seu costume habitual,

Logo de madrugada

O padre-cura foi para o quintal,

Levando a bíblia e sobraçando a enxada.

Antes de dizer missa,

O velho abade inevitavelmente

Tratava da hortaliça

E rezava a Deus Padre Onipotente

Vários trechos latinos,

Salvando desta forma, juntamente,

As ervilhas, as almas e os pepinos.

 

E já de longe ia bradando:

“- Olé!

Dormiram bem?… Estimo…

Eu lhes darei o mimo,

Canalha vil, grandíssima ralé!

Então vocês, seus almas do diabo,

Julgam que isto que era só dar cabo

Da horta e do pomar,

E o bico alegre e estômago contente,

E o camelo do cura que se aguente,

Que engrole o seu latim e vá bugiar!…

Grandes larápios!… Era o que faltava!

Vocês irem ao milho,

E a mim mandar-me à fava!

Pois muito bem, agora que vos pilho

Eu vos ensinarei, meus safardanas!

Vocês são mariolões, são ratazanas,

Têm bico, é certo, mas não têm tonsura…

E nas manhas um melro nunca chega

Às manhas naturais de um padre-cura.

O melhor vinho que encontrar na adega

É para hoje, olé!… Que bambochata!

Que petisqueira! Melros com chouriço!…

E então a Fortunata

Que tem um dedo e um jeito para isso!…

Hei de comer-vos todos um a um,

Lambendo os beiços, com tal gana enfim,

Que comendo-vos todos, mesmo assim

Eu fico ainda quase em jejum!

E depois de vos ter dentro da pança,

Depois de vos jantar,

Vocês verão como o velhote dança,

Como ele é melro e sabe assobiar!…”

 

Mas nisto o padre-cura titubeante,

Quase desfalecendo,

Atônito de horror, parou diante

Deste drama estupendo:

O melro, ao ver aproximar o abade,

Despertou da atonia,

Lançando-se furioso contra a grade

Do cárcere. Torcia,

Para os partir os ferros da prisão,

Crispando as unhas convulsivamente

Com a fúria de um leão.

Batalha inútil, desespero ardente!

Quebrou as garras, depenou as asas

E alucinado, exangue,

Os olhos como brasas,

Herói febril, a gotejar em sangue,

Partiu num voo arrebatado e louco,

Trazendo dentro em pouco

Preso no bico um ramo de veneno.

E belo e grande e trágico e sereno

Disse:

“Meus filhos, a existência é boa

Só quando é livre. A liberdade é a lei.

Prende-se a asa, mas a alma voa…

Ó filhos, voemos pelo azul!.. Comei!” –

E mais sublime do que Cristo quando

Morreu na cruz, maior do que Catão,

Matou os quatro filhos, trespassando

Quatro vezes o próprio coração!

Soltou, fitando o abade, uma pungente

Gargalhada de lágrima, de dor,

E partiu pelo espaço heroicamente,

Indo cair, já morto, de repente

Num carcavão com silveiras em flor.

 

E o velho abade, lívido de espanto,

Exclamou afinal:

“Tudo o que existe é imaculado e é santo!

Há em toda a miséria o mesmo pranto,

E em todo o coração há um grito igual.

Deus semeou de almas o universo todo.

Tudo que o vive ri e canta e chora…

Tudo foi feito com o mesmo lodo,

Purificado com a mesma aurora.

Ó mistério sagrado da existência,

Só hoje te adivinho,

Ao ver que a alma tem a mesma essência

Pela dor, pelo amor, pela inocência,

Quer guarde um berço, quer proteja um ninho!

Só hoje sei que em toda a criatura,

Desde a mais bela até à mais impura,

Ou numa pomba ou numa fera brava,

Deus habita, Deus sonha, Deus murmura!…

……………………………………………………

Ah, Deus é bem maior do que eu julgava!…”


E quedou silencioso. O velho mundo,

Das suas crenças antigas, num momento,

Viu-o sumir exausto, moribundo

Nos abismos sem fundo

Do temeroso mar do Pensamento.

E chorou e chorou… A Igreja, a Crença,

Rude montanha pavorosa, escura,

Que enchia o globo com a sombra imensa

Dos seus setenta séculos de altura;

O Himalaia de dogmas triunfantes,

Mais eternos que o bronze e que o granito,

Onde aos profetas Deus falava antes

Entre raios e nuvens trovejantes,

Lá dos confins sidéreos do infinito;

Esse colosso enorme, em dois instantes

Viu-o tremer, fender-se e desabar

Numa ruína espantosa,

Só de tocar-lhe a asa vaporosa

De uma avezinha trêmula, a expirar!…

…………………………………………

…………………………………………

E, arremessando a bíblia, o velho abade

Murmurou:

“Há mais fé e há mais verdade

Há mais Deus com certeza

Nos cardos secos de um rochedo nu

Que nessa bíblia antiga… Ó Natureza,

A única bíblia verdadeira és tu!…”

Guerra Junqueiro

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