domingo, maio 13, 2018

Graça

O mundo é um jardim. Uma luz banha o mundo.
A limpeza do ar, os verdes depois das chuvas,
os campos vestindo a relva como o carneiro a sua lã,
a dor sem fel: uma borboleta viva espetada.
Acodem as gratas lembranças:
moças descalças, vestidos esvoaçantes,
tudo seivoso como a juventude,
insidioso prazer sem objeto.
Insisto no vício antigo — para me proteger do inesperado
[gozo.
E a mulher feia? E o homem crasso?
Em vão. Estão todos nimbados como eu.
A lata vazia, o estrume, o leproso no seu cavalo
estão resplandecentes. Nas nuvens tem um rei, um reino,
um bobo com seus berloques, um príncipe. Eu passeio
[nelas,
é sólido. O que não vejo, existindo mais que a carne.
Esta tarde inesquecível Deus me deu. Limpou meus olhos
[e vi:
como o céu, o mundo verdadeiro é pastoril.
Adélia Prado - "O coração disparado": Editora Record, 2013.

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